terça-feira, 9 de setembro de 2008

O Baile das Ilusões - Parte 1 - Juarez Mendes

Bom, acho que devo desculpas a todos pela ausência de 2 semanas do blog, ainda que tenha sido ocasionada por um bom motivo! Eu estava/estou doente, e tenho ficado pouco tempo no computador devido a dores de cabeça. No tempo que usava, estive garimpando antigos contos, jogos e passagens com meus personagens, reformulando histórias e cenários, para reapresentá-los aqui em uma ótica mais limpa. Muitas vezes quando se escreve, o lixo vem junto com a imaginação, e a quantidade absurda de gafes que se comete, em apenas 3 páginas de word, chega a ser enlouquecedora. Mas chega de falar de besteiras, vamos aos contos, e como diz o título, hoje lhes trago meu Espanhol Lunático, senhor Juarez Mendes, na primeira parte de suas histórias "O Baile das Ilusões - Parte I".

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Escuro. Nada mais existia além do escuro, do frio, do silêncio, do vácuo. Nada podia sentir, fazer, respirar. Estava atado a um pesadelo de sombras há tanto tempo que se libertar dele se tornara muito mais que um sacrifício, muito mais que uma missão de fim inconcebível ou inestimável. Se libertar das trevas que o ocultavam desde sua derradeira morte, sob as mãos da temível inquisição, se tornara inviável, e nada que fizesse o libertaria do fim que lhe fora presenteado, a dádiva de morrer pela eternidade. Abriu os olhos vagarosamente, absorvendo cada réstia de luz que existia ao redor, cada luminária velha, cada farol, cada cigarro, cada flash do mundo moderno lhe marcando a íris escura, de um marrom intenso e triste, pálido, ameno, tão enfadonho quanto o seu próprio dono.
Ver aquelas luzes lhe fazia lembrar a luz maior que vira em seu leito de morte, o seu berço do despertar. Remoia aquela dúvida por séculos, jamais chegando a uma resposta, era o famoso túnel que vira, ou apenas a fatídica e enfadonha luminosidade do último Pôr-do-sol de sua vida? Entrou no lugar, a despeito de qualquer outra razão que tivesse para ali não pisar, estufando o peito de homem mirrado que era, querendo em vão um pouco da atenção que lhe fora negada tantas e tantas vezes. Um louco entre os normais, um vírus doentio desde a Idade Média, o filho da discórdia, o enviado do diabo. Eram tantas as alcunhas, que já perdera a vontade de enumerá-las, de lembrá-las, eram todas partes de um passado oculto por trás daqueles olhos, e tudo não passava de um doce e ameno pesadelo, que ele queria nunca mais ter de lembrar.
O nariz largo e arredondado na ponta lhe denunciava a origem Espanhola, a pele bronzeada naturalmente, ainda que doentiamente pálida dava-lhe ainda mais precisão a sua descendência. Olheiras vincadas e profundas, como que saídas de um filme de terror, lhe emolduravam os olhos grandes e redondos, os cabelos mal cortados lhe denunciavam, junto às roupas, uma origem medíocre, ou então total desleixo pela aparência. Os cabelos eram lisos, sujos, escuros como o breu que acompanhava seu espírito, caindo até abaixo das orelhas, vagarosos e pesados, como se nem eles mais quisessem pertencer a aquela eternidade hostil e nojenta. Era muito pequeno em estatura, pouco passava de um metro e meio.
Ostentava um peito largo e uma capacidade muscular bem alta. O peito era coberto por uma camisa pólo, amarela, extremamente desbotada e fina, como se a muito não largasse daquele corpo em que os anos passavam com indiferença. Nas pernas uma calça jeans azul, tão surrada e maltrapilha quanto a camisa. E nos pés um tênis velho da “Fila”, modelo anos 80, preto.
Resmungou um pouco antes de se sentar ao balcão, deixando os ombros caírem distraidamente por sob o corpo, como se não agüentassem mais o peso dos anos. Soltou um breve som, algo que lembrava estranhamente o coaxar de um sapo, muito alto e sonoro, só então se encaminhou ao garçom, que o olhava de maneira intrigada e levemente desprezível. – Pois não senhor? – perguntou o garçom educadamente, fazendo seu trabalho de forma comprometida, ainda que ansiasse por estar lá fora, fumando um de seus bons cigarros, e comendo qualquer puta que lhe aparecesse na frente.
Sim, Juarez Mendes sabia! Apesar da aparência de quarentão, era um homem sábio e muito vivido, e aproveitava de toda a experiência para ganhar a vida dando conselhos desajeitados, e muitas vezes enganosos, a eterna briga por uma bola de dinheiro que insistia em não parar em seu bolso. – Me vê uma cerveja, bem gelada, e anota porque hoje eu não pago. – disse distraidamente ao garçom, a voz roufenha ecoando na taverna toscamente iluminada e mal freqüentada.
O garçom o olhou com cara intrigada, e só então, depois que Juarez arremessou um bolinho de papel na mesa, foi que o mesmo consentira em lhe servir a bebida. Olhou ao redor brevemente, coaxando, ou assim parecera, uma vez mais, antes de receber a bebida estupidamente gelada, em um copo suado e lacrimejante.
Não iria bebê-la. Não estava com vontade e nem disposição para beber, apenas queria uma companhia para suas mãos frias, alguém que também estivesse morto como ele, e nada melhor, que um pouco de bebida para lhe ajudar naquele momento tão difícil. Afinal, não era ela a causa mortis mais bela que conhecia?
Viu seus três “amigos” se aproximarem, tomarem acento e se acomodarem de forma a se preparar para o espetáculo. Estava iniciado ali, mais uma rodada de loucuras, e esta, na conta do espanhol. Todos pareciam ansiosos por saber um pouco mais do cainita mais antigo entre eles, todos exceto Hugo, que parecia imerso em sua juventude perdida, e também imerso em medo quanto ao que poderia ouvir a partir daquele momento.
Juarez recostou-se brevemente em sua cadeira, então eles queriam que ele lhes contasse a sua história, a história que tentava guardar de si mesmo há tanto tempo... Olhou as roupas surradas que carregava no corpo, o copo de bebida já quente em suas mãos, e a vontade louca de viver que pulsava em suas veias mortas e destruídas pelo tempo que o castigava.
Sugou brevemente o ar que não mais preenchia seus pulmões, e o expeliu, como uma simples e bucólica lembrança dos primeiros anos de sua existência no mundo cruel que descobrira ser aquele antro. Jogou-se a frente, encarando o francês, fundo naqueles olhos azuis. Passou brevemente pelo alemão, que de forma alguma lhe chamava a atenção, apesar da repulsa eminente que possuía por aquele jeito e ar de superioridade que o demônio carregava. E por último, fitou o britânico, com uma vontade louca de lhe cuspir no terno caro, e na carteira lotada de dinheiro roubado do bolso de todos que já lhe cruzaram o caminho.
- Vocês são vermes, da pior espécie, vocês brincam com a maldição que os assola como se brincassem de faz-de-conta quando tinham oito anos de idade. Desagrada-me dividir a mesa com vocês, e soy muy vivido para perder mi tiempo con ustedes. No entanto, como vocês têm sido companheiros inestimáveis para boas conversas, lhes cederei à história de minha vida, por mais longa e enfadonha que seja. Julgo por bem chamarem o garçom agora, pois não terão tempo mais esta noite, a história será longa, demorada, e vai lhes custar mais do que atenção para assimilá-la em sua magnitude e importância. E esta também explicara do que sou capaz, tudo que já fiz, e tudo aquilo que jamais irão conhecer de mim. Julgam a si mesmos como monstros, pois bem, eu lhes mostrarei a besta encarnada, ainda que sob meu total e impiedoso controle.
Uma vez mais ele se recostou, e como um entediado narrador, começou lentamente a desfilar os fatos, as nuances de seu passado frio e impiedoso, ao qual ele fora vítima desde o princípio, e só depois de anos, conseguira traçar seu caminho para a liberdade.
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- Era um pobre coitado, o ano era 1529 e eu nada tinha exceto um lote inútil de terra em que vivia com minha mulher, meus dois amados filhos e meu pai. Fora duro manter aquelas Terras, ainda que fossem bem afastadas de qualquer centro urbano mais desenvolvido. As brigas constantes entre nós, camponeses, levavam a nossa presença a ser notada e desta forma, éramos perseguidos por nossas crenças ditas pagãs. – Juarez coaxou, olhando ao redor como esperando ver algo que os outros não percebessem, mantinha o tom sério, ainda que aparentasse agora um pouco mais de descontração.
- Neste ano aconteceram talvez os fatos mais felizes de minha vida, e tudo transcorria de forma muito tranqüila. Havíamos findado as disputas territoriais, unindo os camponeses em uma grande sociedade, algo inovador para nós, criamos muito em pouco tempo, e no início de 1530 já possuíamos uma sede bem equipada e um santuário para os nossos deuses. Porém nossa glória foi igualmente nossa derrocada, ao invés de aproveitarmos os frutos de nosso árduo trabalho, a corte, sabendo da empreitada pelo nosso bem estar, enviou o hoje conhecido por tribunal da Santa Sé, outrora a tão difamada inquisição.
Neste ponto Juarez parou e respirou fundo antes de prosseguir em sua narrativa, o corpo tremia involuntariamente, ainda que a frieza dos anos o tivesse calejado contra sentimentos tão mortais, ele agora os sentia, e a dor que causavam era intensa demais para ser esquecida. Levou a mão ao peito esquerdo, como se ali houvesse uma lembrança muito forte de seu passado.
- Eles vieram, e fizeram o que sabem fazer de melhor, prenderam a todos, acusados de pacto com o demônio, e nos obrigaram a confessar crimes que nem sequer pensávamos em cometer. Minha mulher foi estuprada ao meu lado, por um senhor que jurava santidade perante a cruz, porém que crucificava com dor a alma de minha esposa. Sim, meus caros, a alma, pois o corpo belo que me lembro foi destruído por torturas intermitentes. Vi com estes olhos abençoados com a eternidade, minha amada perder ambos os seios, perder os cabelos, e beijar a cruz antes de ser enforcada diante de um povo eufórico.
Teria chorado se não fossem suas pálpebras tão adormecidas e seu corpo tão morto. Nem se dera ao trabalho de ficar triste ou relutante em prosseguir, com o tempo aprendera que o passado ocorre para prevenir fatos do futuro. Com aquele fato, ele aprendera a nunca mais amar, e estava feliz por ser tão inócuo a sentimentos. Era a sua fortaleza perante as trevas que insistiam em não lhe engolir por inteiro, o deixando no limbo entre a existência e a total solidão.
- Meus filhos, como soube alguns anos mais tarde, foram acusados de serem cria do demônio, e foram mortos em segredo, na cela ao lado da minha, não lembro de ter ouvido os gritos deles, espero que tenha sido indolor. – Olhou para o teto, não se lembrava do nome dos filhos, e muito pouco de suas feições, era um passado tão distante, que lhe era custoso demais forçar o cérebro para imagens tão inúteis – Fui torturado durante um mês inteiro, a partir daquele momento, e nada tinha por companhia exceto os sapos que invadiam minha cela, e saiam, quando bem queriam.
- Sim, aqueles eram meus companheiros de cárcere, com a diferença singela de que eles eram livres e eu um preso. Os invejava para ser sincero, e até hoje julgo ter perdido a razão naquela cela, os invejava por serem livres, assim como invejava tantas outras coisas. Invejava inclusive o Deus que os torturadores usavam para me ferir, os meus deuses não declaravam a morte de meus parentes e nem davam ordens de tortura. Já o Deus que se apoderava de meu corpo a cada nova sessão de sofrimento, este era um ser supremo, pois os homens cometiam as maiores atrocidades em seu nome, há de se ser muito bom e piedoso para perdoar os pecados de quem mata por prazer a uma cruz.
- Bom, fui sentenciado à morte na fogueira, já que não aceitei me redimir dos pecados que nem em sonho cometi. Já estava entrando em total desespero, quando o inacreditável aconteceu, mais que isso, a minha redenção surgiu. Um homem entrara com estardalhaço no alojamento de celas, parecia sob efeito de uma fúria impossível, e fez coisas que ser algum faria. Não pude deixar de pensar nas mais diversas ironias, afinal, aqueles homens procuravam o demônio, em cada um dos muitos que estavam presos naquelas celas, e quando menos esperavam, o demônio em pessoa resolvera lhes dar as boas vindas, da forma mais grotesca que se pode imaginar, os matando, banhando-se em sangue fresco e gozando do frenesi que o dominava.
- Eu vi ele se apossar de cada corpo, de cada alma, de cada gota daquele suco até então indigesto. Vi também ele se acalmar, ajoelhar-se no chão, falar uma seqüencia infindável de palavras cujo significado eu desconhecia e também não procurava descobrir. Ele se ergueu e veio em minha direção, no medo de perder o que me era tão caro algumas horas antes do previsto, me acuou, e logo me pus a conversar em desespero com meus sapos, e eles relutavam em me responder, talvez mais apavorados que eu. – Juarez olhou o rosto dos demais, todos expressando feições de descrédito, antes de continuar.
- Ele abriu minha cela, e me perguntou se eu tinha vontade de viver, obviamente lhe disse que sim, intensificando minha ânsia por continuar a rechear as fileiras dos miseráveis deste mundo. Estava sem companheiros, mas tinha ainda minha alma no corpo, e não pretendia deixá-la ir, sem que houvesse muita batalha. Mas o homem em minha frente estava decidido a achar uma resposta que realmente me convencesse, e insistiu na pergunta. Jamais me esqueço das palavras: “E por quanto tempo sua vontade irá durar?”, e eu ingenuamente respondi que para todo o sempre, se assim fosse me dado o direito.
- A resposta fora mais inocente do que pode aparentar, a eternidade inexistia, e quis apenas me referir ao resto de minha vida, um erro incrível de escolha de palavras. Ele me resgatou, me levou para sua casa, e lá ele me subjugou e abraçou, me deixando a mercê da vontade de dois deuses, meu novo senhor, e a besta que ele implantara em meu íntimo, a besta que vi na face de meu mestre na noite em que o conheci.
- Como podem ver, a partir das noites que se seguiram, eu comecei a ser treinado pelo demônio, para me tornar igual. Ora, se Deus era o ser que me fizera sofrer daquela maneira, só havia uma pessoa a quem adorar, a única que antagonizava este Deus. O Demônio que eu chamava de mestre, cuidou-me até meados de 1600, quando, em uma excursão naval, eu e ele rumamos para a recente América Espanhola.
Juarez respirou, como que tentando lembrar, ou resumir, uma quantidade imensa de fatos, que iam muito além da compreensão de qualquer um deles ali presentes. Vasculhava seu cérebro, entorpecido pela cerveja e pelo álcool recém ingerido, em busca de algo que pudesse ser dito sobre aquela viagem, que fora a pior de sua vida. Por relances se lembrou da seita que o abordara, e do terror que sentira, ao ver que apesar de demoníaco, seu respeito à vida humana era considerado angelical ante a monstruosidade dos que lhe eram apresentados.
Como que lendo os pensamentos do antigo, e talvez de fato o estivesse, o poeta francês virou-se para o espanhol, com um olhar luminoso implantado em seus olhos azuis, e disse com sua voz límpida e melodiosa. - Dites-moi, vieil ami, avez-vous rencontré le sabbat? (Diga-me, velho amigo, você se encontrou com o Sabá?). O espanhol, quase que escarrando as próprias palavras, soltou um debochado “Wee”, contra o francês ridículo do poeta.
- Me encontrei com os pestilentos, sim. Eles eram os donos de três dos quatro navios que rumaram para a América, estavam em busca de sangue de lobisomem, dito haver em abundância pelas terras dos velhos Incas. Bom, resisti a eles, assim como resisti a muitos outros. Mas que diferença faz? Vocês só querem saber de minhas desgraças mesmo, continuemos com elas. – Tomou um longo gole de cerveja e fitou a todos. As expressões não poderiam ser mais curiosas, exceto pelo pobre Hugo, que parecia assustado demais com aquele mundo que entrara sem receber o devido convite.
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terça-feira, 26 de agosto de 2008

Uma noite com o Poeta - Augustus Dorbert

A mesa encontrava-se em um abatido silêncio, não mais se escutava os roncos da conversa de bêbados aos arredores, e a tristeza da madrugada começava a assolar a face dos quatro que ali estavam. Hugo brincava lentamente com seu copo de whiskey, como se o peso da presença do demônio ao seu lado lhe custasse mais que a própria alma para ser segurado.

Juarez continuava quieto, como estivera desde o início daquele encontro, o rosto inexpressivo, sereno, as marcas mais profundas da idade vasta que possuía. Ninguém naquela mesa sabia o quanto ele havia sofrido, e nem se algum dia ele lhes contaria, mas o fato é que a presença do mesmo era incomoda, como se uma aura de poder intransponível saltasse por entre as narinas largas do espanhol.

Os outros dois, estavam quietos tal quais os outros, o alemão encarava sorrindo o jovem almofadinhas, e sorria ao vê-lo se desesperar com tal ato. Pensava em todas as formas possíveis de dor que poderia lhe causar, e isso o enchia de prazer. Ainda neste clima que fora interrompido por Augustus. O poeta havia pigarreado, como sempre fazia antes de expor sua bela voz aos demais.
Declamaria um poema agora sem qualquer problema – disse Guto, ainda que tal frase soasse sem nexo e sem qualquer fundamento – Mas julgo que estamos por demais atarefados em nosso silêncio mórbido e desgastante. Então para que entendam a essência de minha arte, vou-lhes contar a história de sua criação, a história de uma pequena paixão que tive. – Dito isso, se pôs a falar, como sempre, de forma estonteantemente bela e culta, enaltecendo cada detalhe de sua breve narrativa, como sempre, em uma estranha e infundada terceira pessoa.
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O som abafado de música eletrônica e de pés colidindo contra o chão acordava lentamente o degenerado, que parecia imerso no sono mais profundo até minutos antes. Sentia o ar gélido da noite entrando por entre as frestas da sua bela porta em mogno, um exemplar que importara da Inglaterra.
Ergueu-se lentamente, mantendo os olhos ainda fechados, como que saboreando o despertar, gozando de cada momento em que recordava dos sonhos recém devaneados, e dos muitos sonhos que teria a realizar àquela noite, sim, cada hora que passava naquela boate o enaltecia, o tornava mais confiante de si, e desta forma, o levava a realizar suas maiores insanidades, perdendo-se em cenas voluptuosas e pecaminosas.
Fazia arte atrás de arte a cada sopro, a cada suspiro de suas musas, a cada último suspiro de suas mórbidas modelos, inertes perante a figura imponente do poeta que as subjugava e trancafiava entre as emoções de servir ao bem amado. Ah! Pensou ele, que belo era o amor, o amor fajuto que aquela figura demoníaca e edênica, simultaneamente, instigava em cada ser vivente, como o veneno de uma serpente, que uma vez inoculado, não poderia ser combatido até que a cobra decidisse matar a presa definitivamente.
Trajou-se da melhor forma possível, uma camisa social branca, com golas em rufos, e extenso babado, lembrando muito uma camiseta de fraques antigos, originários dos primeiros burgueses franceses, visual que pretendia adquirir por aquela noite. Seguiu vestindo uma calça vincada, da tonalidade grafite muito escuro, que só poderia distinguir-se de preto à luz abundante, nos pés um sapato social, bico fino, lustroso, e aparentemente de verniz, devido a seu aspecto rijo. Trajou o fraque por cima de tudo, um belo modelo da mesma cor da calça. Desta feita, julgou-se quase pronto, e dirigiu-se para o espelho próximo.
E que espelho, uma formosura espanhola, o ouro mais puro extraído da América, com pequenos enlaces em fio de prata, grande suficiente para lhe englobar o corpo todo, o vidro era cristal puro e trazia em suas bordas desenhos esculpidos em baixo relevo, que ao chocar-se com a luz ambiente, causavam uma estranha sensação de furta-cor.
Optou por colocar um lenço, como costume da época, no lugar da gravata, não tinha certeza se saberia tecer o nó ainda, mas por via de qualquer indagação, preferiu tentar. Atou firmemente o lenço roxo ao pescoço, e se olhou uma vez mais na peça espanhola, sorriu para sua imagem bela e enigmática, os cabelos negros atados em um rabo-de-cavalo pouco extenso. Da barba recentemente escanhoada restava apenas o tradicional cavanhaque, os olhos azuis assemelhavam-se a bolitas lilases, tamanha a tonalidade daquelas duas esferas impressivas, os olhos mais belos da França, como já muito haviam lhe dito seus amigos e conterrâneos.
Abriu a porta do quarto, galgando os poucos passos até a escadaria que levava dos dormitórios, para o grande salão que compreendia a boate, pôs a cartola na cabeça, e apoiou-se vez que outra na bengala de madeira, com a ponta em prata, com o simbólico desenho de uma flor, a Flor Toreadora, o símbolo dos belos, dos incríveis detentores da beleza e do culto a esta, os magnatas das artes, que ele obviamente, tinha o prazer de preencher as fileiras.
Entrou teatralmente no bar do local, girando a bengala entre os dedos finos, o que lhe gerou uma dúzia de olhares curiosos, e outros tantos cheios de malícia, a maioria já o conhecia, sabia de sua verdadeira identidade, e o amava, sim eles o amavam, e amavam sua capacidade de fazê-los sentir prazer, de seus calorosos beijos em seus lábios e demais partes do corpo, sempre quentes, sempre macios, sempre cheios de amor e de tesão. Cumprimentou um ou outro com um leve aceno de cabeça e sentou-se no bar, diante de sua barwoman preferida, começou a falar sobre o movimento, enquanto ordenava um Martine em uma pequena taça, com aquelas azeitonas démodé que ele tanto odiava, mas que para o ambiente convinham.
A arte de seduzir era muito mais que aparência, era técnica, e desta ele estava cheio, cada vez mais descobria as informações pertinentes ao tipo de rebanho que ali habitava, e cada vez mais os amava. Eram todos dóceis chapados, pelo uso excessivo de alucinógenos, e sedentos por experiências novas e instigantes.
Foi logo acompanhado por uma jovem de aspecto atraente, provavelmente uma dissidente do movimento punk da década passada, ao julgar por sua aparência pseudo-rebelde e nostálgica. Os cabelos descolorados bagunçados, com uma acentuada franja encobrindo a face direita do rosto pálido e de lábios grandes e carnudos, decorados por um pequeno piercing em forma de argola no canto inferior esquerdo. As roupas eram fabulosas, e de uma aleatoriedade incrível, ainda que muito bem encaixadas, uma calça preta, colada ao corpo, exibindo as cochas torneadas e vastas, e uma camiseta listrada horizontalmente de preto e branco, que lhe exibia um quantidade ínfima de seios, porém que se encaixavam perfeitamente naquele corpo esbelto e provocativo.
Augustus virou-se para a recém chegada, não iria falar, para aqueles cordeiros alucinados palavras seriam desperdício, eles gostavam de ação, e pode perceber que muito em breve já estaria retornando ao seu quarto. Envolveu-a com uma das mãos, segurando firmes os cabelos da nuca, em uma pegada dominadora e impositiva, o poeta daria as ordens a partir de agora, e ela seria apenas uma presa acuada, estipulando como ponto limítrofe para as suas ações à vontade do abençoado.
Beijou-lhe os lábios carnudos, sentindo o gosto forte de álcool, que se misturava com o sabor doce de uma pastilha de menta, provavelmente recém ingerida. Não sentiu prazer algum naquele ato profanatório e herege, corrompendo o corpo dado pelo sagrado. Sentiu-se um monstro, e ao mesmo tempo sorriu, ao perceber que de fato era um. Ele se tratava de uma aberração da natureza, fruto da vontade do próprio Todo Poderoso, afinal não fora ele que em sua ira, cedera a Caim a chance de criar a raça noturna? Os senhores das futuras noites, que hoje se espalhavam em tal intensidade pelas terras deste mundo, que em muitos lugares as presas se tornam raras, e o “canibalismo” vampírico se torna uma lei irrefutável e assustadora?
Aquele mundo era um cobertor de sombras, e Guto sabia aproveitar a réstia de luz que conseguira alcançar, sentia-se confiante sobre a sombra da Sword of Kain, e ali tinha certeza de que jamais sofreria dos males do mundo, afinal, ele era o mundo ali dentro, e tudo nele convergia para o seu prazer inesgotável. Carregou a garota lentamente para o seu quarto, desferindo mordidas nos lábios dela, mordidas que lhe deixavam os beiços ainda mais rubros e charmosos. A pequena vagabunda não se abstinha de causar a Guto uma pitada do que julgava ser dor, arranhões intermitentes e puxões, clichês, de cabelo, um estardalhaço sem fim, quando na verdade o que Augustus queria era bem simples, bem mais fácil, e realizaria agora.
Viu a pequena retirar a blusa e exibir os pequenos seios, pontiagudos e sedentos por serem beijados, por provocarem o prazer inestimável naquele corpo tão jovem e esbelto. Ele não a deixaria só com vontades, seria um bom anfitrião, e faria com que aquela garota jamais esquecesse aquela noite, talvez porque ela fosse a última que ela iria experimentar por um longo tempo, muito mais do que poderia imaginar, isso se o Senhor tivesse piedade de sua alma pecadora e a deixasse retornar aos confins da Terra, para mais uma existência, pois aquela, acabava de chegar ao fim.
Sorriu, agora ostentando caninos muito brancos e pontiagudos, dotados de uma beleza quase etérea e provocativa, e não foi com surpresa que ouviu o comentário da já desnuda garota - Então é verdade? – disse ela, em um tom provocativo - Você de fato é um demônio tal qual meus amigos me disseram - e lambendo os lábios obscenamente disse ainda - Me disseram que é capaz de causar mais prazer que qualquer coisa, veremos se é verdade. - Guto sorriu, e deitou-se sobre a moça, beijando-a ternamente, se ela queria prazer, então o daria.
Percorreu com os lábios toda a extensão do corpo dela, lambendo e beijando cada parte daquele corpo infantil. Parou perto da região genital da garota, lambendo-lhe o clitóris, insinuando o início de um fatídico sexo oral. Ora, não era o que era por dar mesuras e por provocar sensações medíocres a seus eternos súditos, aquela mulher iria provar da mais intensa sensação de prazer e iria ser tomada pelos calafrios do orgasmo, junto aos que acompanham a inesperada morte. Mordeu os lábios de sua vagina, sentindo o sangue jorrar em sua boca, o beijo mais ávido de um imortal estava sendo desferido, e a vítima gemia em um orgasmo insano, era impressionante como tal ato gerasse um prazer tão intenso em quem estava fadado a morrer.
Sorriu, sugando sangue e os mais diversos líquidos expelidos pelo orgasmo fulminante da moça, sentiu as pernas dela tremerem, e a respiração tornar-se cada vez mais esparsa. Não, tais efeitos não eram decorrentes do orgasmo, mas sim pela vida que aos poucos deixava aquele belo corpo, esperou que ela morresse antes de desgrudar os lábios de sua vagina, limpando-os obscenamente - Agora sentiu o prazer minha cara, é minha vez de desfrutar dos prazeres mais puros.
Retirou o pouco de roupa que ainda tinha e debruçou-se sobre o corpo morto da jovem, fez sexo em todos os meios possíveis, satisfazendo seus desejos mais internos, ainda que não tivesse vida, ainda sentia necessidade de tais atos. Gozava vez por vez, aproveitando o máximo o momento, de sua eterna noiva, a beleza, que não necessariamente, precisava estar viva. Ela era muito mais bela quando imóvel. A morbidez lhe provocava a ânsia de escrever, e o instigava a beleza. Ainda nu recorreu de um lápis e um pedaço de papel, e começou a escrever.
Assim que terminou, olhou para a sua amada, ainda na posição que a deixara, e como poderia estar diferente? Declamou o poema, a sua recente obra, esculpida apenas para o mármore daquela pele branca e perene, que em breve seria entregue aos maldizeres dos vermes:


Se tiver de me perder na profundeza dos teus olhos,
Que também morra serpenteado por teus braços,
Quero em beijos, cada verso de meu epitáfio
E em suspiros de saudade, que nosso amor se perpetue


Tomou fôlego ao fim da primeira estrofe, e seguiu para a segunda:


E se tiver de viver ladeado por teus sonhos,
Quero encontrar em cada passo o teu rosto,
Ao fim de cada traço, o sabor ameno de teu lábio,
Ao fim de cada estrofe, a liberdade de te amar.


Olhou para o defunto a sua frente, como que esperasse um sorriso de sua parte, como não vira nada, assim prosseguiu:


Gozar da vida que me espera junto ao teu colo,
Apaziguando minhas lamúrias em teu semblante
Curtindo em silêncio cada gesto de teus dedos,
Ouvindo com amor, o som profano de tua boca.


E rumando para o desfecho ímpar de sua obra, saudou os ouvidos de sua amada com mais quatro e belos versos:


Viver ainda preso ao teu seio fátuo e morno,
Lamentando não o ter por casa desde cedo,
Sorrindo morno a cada passo que daremos,
Uivando triste, quando por fim acabaremos.



Terminou o poema com um sorriso morno nos lábios, olhou para o corpo da amada desfalecida, e assimilou a verdade dolorida, ela morrera em seus braços, e não a teria mais, e com esse abatimento injustificado ele se deitou, agarrado ao corpo do defunto e ainda nu, dormiu, tendo os mais magníficos sonhos com sua amada.

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Não se sabia por quais motivos, mas o espanhol ria como se acabasse de ouvir a melhor das histórias de sua vida. Não poderia ser mais gritante a diferença de tal expressão para a dos demais componentes do grupo. Kirl apenas sorria, imaginando com pureza aquela cena única, e imaginou-se no lugar do poeta. Não a teria matado, ele a teria tornado bela, e depois a teria torturado, e então a conduziria para a horripilante feiúra. Aquilo sim seria um agradável jogo.

Já o jovem britânico parecia pasmo, sua recente chegada àquele circo de horrores ainda o impedia de assimilar certos atos, certas condutas, e a cada história que ouvia daqueles três homens a sua frente, mais queria sair dali. Não possuía muito que contar, e tudo que contara até agora, fora levado com desprezo, talvez exceto pelo poeta francês, que lhe parecia a mais agradável companhia, dentre todos os ali presentes.

O circo continuava, as idéias se degladiavam entre si, e a sinfonia dos horrores se perpetuava pelos ouvidos dos bêbados próximos. Guto olhou esperançoso aos demais colegas, de quem seria a próxima história?


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Leu? Gostou? Não? Por favor, deixe uma crítica, positiva ou negativo, quanto ao que acabaste de ler, grato!

Novo Blog, mais histórias.

Bom, já criei dois blogs com intuito de promover meus poemas, esse, apesar de diferir um pouco no âmbito literário, segue a mesma linha dos demais. Aqui vou apresentar-lhes contos de minha autoria, por vezes, de autorias de amigos, com uma mesma proposta, usar nossos personagens de RPG para criar contos e histórias intrigantes, mostrando o sofrimento, a luta e a beleza em se viver como um degenerado num mundo corrompido.

A idéia é antiga, e espero que desta vez tenha resultados. Para evitar que fiquem entediantes, ou ainda, monótonos, os contos serão publicados, quando muito extensos, em partes, para assim instigar a leitura, e não cansá-los.

Cabe a mim, em breves linhas, explicar o que são, e do que são feitos, os personagens que em breve estarão inundando suas mentes. Em geral, serão vampiros, não as aberrações as quais você está acostumado, mas sim pessoas normais, que amaldiçoadas por outros Vampiros, acabam tendo de viver a frieza das noites, alimentando-se de outros de sua antiga raça, sem ter escapatória.

Os contos, todos, vão girar em relação a esta briga Humanidade X Bestialidade, conflito que vai assolar o peito dos personagens de forma a que eles recorram a seguinte indagação, vale a pena a imortalidade, aliada a monstruosidade? E desta forma, terão de se decidir entre permanecerem moralmente corretos, ou então, corromperem-se, a ponto de se tornarem caçadores e predadores noturnos, no maior estilo Hollywoodiano, no entanto, sem seus tantos clichês.

Bom, espero que a idéia lhes agrade, e em breve, espero que seus olhos fiquem repletos pelas histórias dos 5 personagens que já foram associados a esta idéia, sendo eles:

Augustus Dorbert
Dominique Ferrón
Hugo Desklok
Kirl Scork
Juarez Mendes

Todos corrompidos, todos monstros insaciáveis, todos girando na incógnita entre sobreviver, ou morrer por sua já destruída moral!

Bem vindos, à Histórias da Noite!